As grandes navegações fizeram com que os europeus passassem a valorizar mais o relativismo. Essa primeira globalização impactou as mentes europeias, que se viram diante de novos povos em novas terras. Era fabuloso conhecer uma arara ou ver de perto um tupi. Mas esse espetáculo era restrito; a maioria só ouvia rumores, ou, caso dos mais abastados, colecionava pedras polidas, desenhos e penas. A eleição presidencial mais acirrada da história nacional deixou no ar uma importante pergunta: que ideia de democracia é essa que julgamos conhecer?
O que chamamos por esse nome consiste, lembremos, entre outras coisas, em eleições periódicas para representantes em várias instâncias, separação de poderes, sistema de freios e contrapesos, império da lei (sistema constitucional), garantia de direitos e liberdades essenciais, entre as quais a de expressão e a de imprensa, recursos para tomada de decisão direta pelo povo (plebiscito e referendo), legitimidade do governante perante o governado. Ao menos isso era o que importava nos tempos em que a realidade do fenômeno valia mais do que as palavras que a ele se referem.
Venceu o candidato eleito com a menor diferença que uma eleição presidencial brasileira já viu; entre os dois ficou um número de votos equivalente a 1/3 da população da cidade do Rio de Janeiro. Para chegar a isso o vencedor teve de se juntar a adversários históricos, que aceitaram se submeter a uma campanha de culto à personalidade bem pouco democrática, e sem que saibamos exatamente por quê. Sabe-se lá mais que outros setores imaculados da sociedade também foram seduzidos para o tal projeto, e mediante quais compromissos; a se ver por quem mais celebrou, coisa boa não parece ser. Retirado da cadeia e posto no páreo por decisões que muitos entenderam como “questionáveis”, Lula é um vitorioso derrotado: ganha com as eleições o alimento para sua vaidade, mas leva o poder a quem lhe faz de marionete.
Já a direita, perde e também ganha: teve a maior votação de sua história, fez deputados, senadores, governadores, e chega ao presente com vários quadros, políticos e técnicos, formados pelos quatro anos que passaram.
Difamado diariamente por todo o mundo, Bolsonaro por pouco não vence, e isso sem que sua propaganda eleitoral tenha sido difundida com justiça contra quem pôde persegui-lo e censurá-lo à vontade. E tem tudo para crescer cada vez mais: o consórcio que agora assume o poder, como bom estamento que é, deve voltar a ignorar o que povo sempre lhe pediu e fazer de novo tudo o que bem entender, e sempre sob os mais democráticos pretextos, é claro.
Da comemoração ficaram vários sinais: festas com tiros de fuzis de numeração raspada, bandeiras do Che Guevara aqui e ali, carros em chamas, arrastões, invasões, furtos etc. Para completar essa grande festa da democracia, um ministro argentino já sugeriu até a criação de um banco comum, para ver se dá conta de cobrir os conhecidos rombos de sua economia com o dinheiro dos brasileiros. Pode não ser nessa democracia em que muitos brasileiros acreditaram votar. Mas foi nela que votaram. E esse lado sombrio também está ali. Sempre esteve. Vejamos, com o passar do tempo, quantos indignados bandearão para a oposição e quantos continuarão apoiando, ou se convertendo de vez, na turma que só fala “democracia”.