Como – e por que – não mudar o mundo
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Rafael Nogueira
6/4/20252 min read


Progresso é um palavrão dito em jantares caros. Todo mundo repete. Quase ninguém digere. Essa urgência revolucionária, por mais bem-intencionada que seja, revela uma incompreensão fundamental sobre como as instituições funcionam, e por que certas velharias podem ser, na verdade, formas discretas de sabedoria.
O mundo, dizem, precisa mudar. Há coisas, verdadeiras senhoras empoeiradas, que resistem. Parecem teimosas. Talvez só estejam sendo prudentes.
Considere o teclado QWERTY. Criado para resolver um problema técnico das antigas máquinas de escrever — evitar que as hastes metálicas se enganchassem —, sobreviveu ao desaparecimento do problema. Poderíamos mudar para um modelo mais eficiente. Mas mudar custaria muito: reeducação, adaptação, confusão. Às vezes, conviver com a imperfeição é mais sensato do que bancar o preço da reinvenção.
O mesmo vale para outras esquisitices: dirigir à esquerda no Reino Unido, medir temperatura em Fahrenheit nos Estados Unidos, contar em milhas e onças. Convenções que não fazem sentido hoje, mas persistem. Não por lógica; por inércia. E, talvez, por um tipo de sabedoria que não dá entrevista.
Assim também são as instituições.
Elas não permanecem no ponto zero. Crescem. As melhoras entre elas não são fruto de decisões frias de comissões técnicas, mas de longas sedimentações humanas. Como defendia Michael Oakeshott: é preferível o familiar ao exótico, o longamente ensaiado ao experimento utópico. Não por covardia, mas por reverência ao que já funcionou.
Burke chamava isso de “cortesia com os mortos”: reconhecer que as gerações anteriores talvez soubessem algo que nós, em nossa autoconfiança inflada, ignoramos.
As instituições mudam. Mudam como mudam as cidades: por camadas. Um prédio antigo ganha nova função. Uma lei velha muda de interpretação. Um costume se recicla. A paisagem se transforma, mas sem gritaria.
E mudar instituições é mais do que alterar leis. É mexer na lente com que enxergamos o mundo. Mudar de régua. De código. E sem querer fomos parar bem longe dos propósitos iniciais.
O que falta, então, não é mudança. É mudança bem feita.
E enquanto os planejadores escrevem utopias, a vida se esgueira pelas rachaduras. Vemos jovens que, cansados de uma liberdade sem forma, redescobrem o valor do silêncio, da rotina, da disciplina. Percebem que algumas “velharias” — o ritual, o respeito, a reverência — talvez sejam depósitos de sanidade num mundo em colapso.
Tradição não é entulho. É o que permaneceu de pé quando todo o resto ruiu. É sabedoria encarnada. Costumes que não sabemos explicar, mas que, se abolidos, precipitam nossa queda.
Mudar é necessário. Mas quando sabemos o que estamos mudando — e, mais importante, o que convém preservar. Difícil não é mudar. Difícil é mudar bem.
Mudar sem destruir. Ajustar sem apagar. Remediar sem envenenar. Eis o desafio mais nobre. E mais raro. Porque não enriquece consultor. Não elege deputado. Não viraliza.
Requer paciência em tempos impacientes. Humildade numa época arrogante. Reverência numa cultura iconoclasta.
Talvez seja justamente por isso que valha a pena tentar.
Publicado 04/06/2025 09:28 no Jornal O Dia
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