Filosofia e decadência

Rafael Nogueira

9/24/20253 min read

I.

A mal chamada "PEC da blindagem" não me parece, à primeira vista, uma conspiração de corruptos para assegurar a impunidade, como alardearam tantos membros do governo federal e foliões da micareta esquerdista, sempre prontos a vestir a fantasia de guardiões da virtude, mesmo depois de saírem impunes de comprovadas estripulias.

Mas a história é menos óbvia.

Na Constituição de 1988, originalmente, previu-se que, antes de qualquer denúncia contra deputados ou senadores ir parar no Supremo Tribunal Federal, a respectiva Casa legislativa deveria dar o seu aval. Eram dispositivos que serviam para resguardar a separação de poderes, para que nem tudo pudesse ser decidido por promotores ou juízes.


O problema é que surgiu um caso muito fora de série. Hildebrando Pascoal, então deputado pelo Acre, era conhecido como o "deputado da motosserra". Adivinha por quê. Isso. Por ter mandado esquartejar desafetos. Sim, com Serra-elétrica. Sim, ele mesmo o fazia, com suas próprias mãos.
Diante de um personagem desses, o pavor de seus pares em assumir a responsabilidade de autorizar ou barrar o processo é compreensível. A solução foi retirar o Congresso do caminho e deixar a decisão nas mãos exclusivas do procurador-geral da República e do STF.


Três décadas depois, a realidade mudou. Não há mais Hildebrando serrando adversários, mas há um Supremo cada vez mais inclinado ao jogo político. A consulta constitucionalmente garantida ontem abdicada pelo Congresso, hoje enfraquece a representação popular concentrando poderes em quem não foi eleito. Pensa comigo: uma votação qualquer no Congresso pode ser capturada por uma suprema ligação. A discussão, portanto, não é tão simples quanto a gritaria dos shows de rua quis fazer parecer.

II.

Tenho lido Leo Strauss e Eric Voegelin ultimamente, e se entendi bem, para eles nós vivemos num momento privilegiado para a filosofia e para a ciência. Pois note bem: a filosofia clássica não nasceu no apogeu da Grécia, mas na sua decadência. Platão escreve A República quando Atenas definhava, corroída por guerras internas, pela derrota para Esparta, pela erosão que abriria caminho para a dominação macedônica. Não foi a era dourada que viu nascer filosofia.

Séculos depois, Santo Agostinho publica sua A Cidade de Deus sob o estrondo das invasões bárbaras que corroíam Roma. O mesmo padrão se repete com Voegelin, Strauss, Hannah Arendt e tantos outros intelectuais do século XX, que fugiram do nazismo e do comunismo levando consigo não apenas suas extraordinárias mentes, mas também os escombros da cultura europeia. Voegelin vinha de Viena, daquela Viena que, entre o fim do século XIX e o início do XX, talvez tenha sido o ponto mais alto já alcançado pela humanidade em música, literatura, artes visuais, ciências e humanidades.

Em cada uma dessas épocas, o colapso social e político fez bem à inteligência. A filosofia encontrou sua razão de ser não no conforto, mas na crise.

III.

Se é verdade que vivemos em decadência, há nisso a estranha consolação de que foi da decadência que nasceram grandes livros e grandes obras. Claro que isso pode custar a nós, estudiosos contemplativos, problemas de ordem prática gravíssimos: pior que contas atrasadas, são as perseguições judiciais, os exílios forçados. Mas quem sabe daí não brotam as obras de gênio que tanto faltam?

Talvez não seja coincidência que questiúnculas políticas sanguinárias e a leitura de Strauss e Voegelin tenham se cruzado em minha mesa na mesma semana.

As duas realidades falam, cada uma à sua maneira, sobre o fenômeno do colapso da ordem como prelúdio necessário à busca pela ordem interior. Se não conseguirmos produzir as obras, ao menos teremos esboçado os desenhos a partir dos quais outros poderão erguer edifícios inteiros de contribuição brasileira ao conhecimento universal.

Publicado 24/09/2025 00:00 no Jornal O Dia
https://odia.ig.com.br/colunas/rafael-nogueira/2025/09/7134174-filosofia-e-decadencia.html

Arte Paulo Márcio